domingo, 17 de março de 2013

QUILOMBO, ALMA FEMININA



Era o final do século XIX, Maria Luiza Andrade Paim, ex-escrava, e seu esposo Manoel Barbosa dos Santos, ex-escravo e ex-soldado do exército nacional na Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, regularizam seu terreno na zona rural de Gravataí e dão ao quilombo o nome do patriarca, pois mulheres não tinham direitos legais, só lhe restavam passar os seus bens adquiridos para os esposos e filhos homens. Lá o casal teve 12 filhas, entre elas, Rosalina Correa dos Santos, nascida em 1908.
Anos mais tarde Rosalina, mais conhecida como Rosa, casou-se com João Maria Genelício de Jesus. Por volta da década de 1940 decidem mudar-se para uma terra próxima, entre arroios e capões, como trabalhadores rurais, onde ela passou a trabalhar na horta e ele como lenhador.  Rosa e João, meus avós, tiveram 13 filhos.  No lugar escolhido intensificaram pomares e plantações de flores para se sustentarem. Hoje o espaço se encontra em meio ao centro urbano, cuja paisagem muito mudou.


E a liderança feminina se firmou. Tudo começou com a Rosa... Com a Rosalina... Que plantava Rosas... Que vendia Rosas... Fazendo conhecer a sua Chácara das Rosas.  Sua família se ampliou e a partir do viver quotidiano com características únicas tornou-se uma comunidade.  Formou sua identidade em meio aos sentimentos partilhados, valores, influência histórica cultural. Mas, também com muita luta para garantia do direito territorial e no combate ao racismo e preconceitos. O local passou a ser conhecido como Chácara das Rosas em Canoas/RS, que um século após passou a ser reconhecido como um dos primeiros quilombos urbanos do Brasil.
Importante salientar que avó Rosa, após o falecimento de seu esposo, com auxílio dos filhos, além da horta e da floricultura, fazia quitutes caseiros (bolo de milho, bolo de aipim, doces, pão em forno de barro) bordava colchas de retalho, criava galinhas, porcos e gado para a sustentação do dia-a-dia da família, mas, também para comercializar nas feiras e no mercado Café Colonial, um tipo de central de alimentos da época. Avó Rosa era a parteira e a benzedeira da região, uma referência no território, uma alternativa de atendimento, quando não havia muitos recursos na época.  Desta forma desenvolveu a ancestralidade das curas, cultura de nosso povo, que se manifestava através do feminino e do uso dos elementos da natureza. Este fundamento foi resgatado e desenvolvido com a criação do Terreiro dentro da comunidade pela minha irmã Liege, retomando as práticas da avó Rosa através da religiosidade afroumbandista.  As demais práticas e exemplos da avó Rosa foram tendo seguimentos pela família. Tia Diolinda, juntamente com Tio Tonho, mantiveram a cultura das ervas com sua utilização. Seus canteiros são a farmácia da comunidade até hoje. As primas Beatriz, Rosa, Noemi e Neusa são destaque no artesanato e culinária colocando o Quilombo dentro da economia solidária do município. A culinária foi sempre um costume de trabalho coletivo realizado pelas mulheres, em círculos. A tia Miguelina, apesar de sua limitação mental, sempre apoiou na preparação dos doces (laranja, abóbora, figo, batata). A prima Elisabete (Bete) é o exemplo de cuidado com a saúde chamando a todos para a manutenção da beleza e auto-estima. Outro exemplo seguido foi pela Tia Tereza Goulart (Tia Nega) na organização e cuidado das crianças, com ajuda da Tia Miguelina, permitindo o movimento das demais mães para irem trabalhar fora. Atualmente sua filha Rosângela (Tia Rô) está com esta responsabilidade. Tia Carminha reside atualmente na casa que era da avó Rosa. Estamos em processo de estruturação, fomos contemplados no Programa do Governo Federal Minha Casa, Minha Vida, que ainda tem muito que avançar. As famílias remanescentes de Rosa e João estão recebendo, cada uma, sua casa e tia Carminha lutou muito pelo direito de guardar as madeiras da primeira residência do local. Nossa avó, uma riqueza de saberes, sempre buscou ampliar horizontes e fez acontecer. Como ela, minha prima Ângela partiu para fora da comunidade, atrás de formação acadêmica, quando ainda somos vistos como pessoas sem cultura. De todas as formas a continuidade da liderança da avó Rosa se manifesta. Sua luta por melhorias ainda hoje está presente em nossa luta. No decorrer da história do Quilombo um dos acontecimentos que mais nos marcou foi a iluminação da comunidade em 2009. Lembro quando minha tia Abrilina, filha mais velha da avó Rosa, de 82 anos, olhou pela janela a noite e disse: - Isabel parece dia! 
Minha liderança também se espelhou no seu grande exemplo, e na forma como meu pai João dos Santos Genelício conduzia o diálogo para resolução de problemas internos da comunidade. Após o falecimento de meu pai decidi participar ativamente e, a partir daí, se iniciou o processo de criação de uma associação, pois me recordo que durante uma reunião os membros da minha família estavam muito desmotivados e compreendi que neste momento era a hora de entrar na luta por nossos direitos.  Também, com minha mãe Glaci Goulart Genelício aprendi muito, pois ela agrega as mulheres do entorno chamando para chás e feijoadas, e estes momentos sempre foram de grande debate e reflexão.
Com o passar do tempo os problemas da comunidade foram se avolumando. No entorno éramos reconhecidos como os pretos, cujo espaço era chamado de planeta dos macacos; sem acesso a qualquer política pública não tínhamos saneamento básico em pleno centro da cidade, em meio a valorização territorial. Através do movimento quilombola junto a outras parcerias foi criado em 2007 o grupo de apoio à Chácara das Rosas. Foi um momento de despertar, de muita afirmação, onde parecia tudo tão perfeito com minha irmã Liege na liderança religiosa e eu a frente da Associação criada no Quilombo.  Fortaleceu-se a partir daí a participação das mulheres, cujas ações a favor de sua comunidade movimentou conhecimentos que se traduziu em poder pessoal e influência social. Firmou-se todo o tipo de liderança, independente da idade e da forma de decisão: apaziguadora, cuidadora, multiplicadora, criadora, relatora, divulgadora, artista, produtora, articuladora... As protagonistas são as filhas, noras e netas da Rosa: mães, irmãs, tias, sobrinhas, primas, juntas, combatendo, a seu modo, o preconceito, o racismo e demais conflitos dentro e fora do Quilombo.
Uma grande contribuição no processo foi a do Terreiro do Quilombo Reino do Pai Ogum. Destaco a coragem e a força do Babalorixá Liege – na pessoa de meu irmão Edson Genelício - que garantiu o direito de exercer o culto de matriz africana, reconhecendo e resgatando a identidade de nossos ancestrais. A liderança religiosa de minha irmã Liege impulsionou as demais lideranças femininas. Sua resistência de forma organizada, a preocupação com o fortalecimento do sentimento de comunidade, de pertencimento, traz alternativas de sustentabilidade através de chás beneficentes, galetos e festas com o objetivo de arrecadação de fundos e doações para o auxílio aqueles que mais necessitavam. O Terreiro passou a ser uma referência, onde nós, mulheres do Quilombo, passamos a nos reunir mais, nos empoderando e desenvolvendo novas redes de apoio e parceria, com o objetivo de auxiliar na resolução de problemas identificados junto a nossa comunidade tradicional. Intensificamos a confecção de artesanatos diversos, envolvendo a todos, e passamos a comercializar em diferentes eventos.  Passamos, também a realizar reuniões e oficinas de capacitação de acordo com as necessidades. Este Terreiro foi um centro especial, como o braço de uma mãe que acolhe seus filhos, uma vez que, com o tempo, as moradias precárias e a extrema falta de estrutura, significavam problemas e conflitos, requerendo diálogo constante, união e o entendimento na comunidade. Neste sentido as mulheres não ficaram somente confinadas ao seu espaço doméstico, mas colaborando e liderando na busca de soluções.
Em 2009 a Associação Remanescente Chácara das Rosas foi, finalmente, registrada com seu estatuto. Neste mesmo ano a comunidade recebeu a sua titulação como Quilombo Urbano. Em março de 2011, por ocasião do dia da mulher, a associação, apoiada pelos parceiros, organizou o I Encontro Regional das Mulheres Quilombolas com o tema Inspirando Esperança, Invocando Mudança. Reunimos familiares e amigos de outros quilombos do Estado, além de representantes do poder público e de Ongs.  O objetivo era discutir a força da mulher quilombola como protagonista de ações locais para que as demais políticas avancem, cujas articulações integradas ajudam a estender sua força e reconhecer seu poder de realização. Foi um encontro onde foram debatidas as políticas públicas, cultura e direito para atender os anseios e preocupações com a construção de uma vida saudável, com a família, com as crianças e jovens, dentro e fora da comunidade. Pude perceber os avanços na nossa e nas demais comunidades em participação, iniciativas e conquistas que fortaleceu o sentimento de pertencimento à cidade, à região e a sua história.  Este encontro alavancou nosso processo de desenvolvimento para a formação de uma rede de mulheres quilombolas parceiras com o objetivo de se auxiliarem na resolução de problemas específicos, identificados junto as comunidades tradicionais. Queremos honrar a nossa herança, cuidar dos nossos membros, apostar no futuro.
Esperamos criar um Centro de Formação e Capacitação para que, a partir de nossas demandas junto às políticas públicas, possamos abrir as portas da nossa história, cultura, costumes e valores aproximando assim a Comunidade Quilombola da nossa sociedade. Para isso, minha irmã Neusinha assumiu um papel importante de registro de nosso movimento auxiliando na tradução de nossas demandas. Como neta de Rosa e João, busco articular a continuidade dessa luta de quatro gerações, na manutenção de nossos direitos e da identidade negra, passada para nossas crianças cujo aprendizado pretendemos firmar na crença do poder de realização. Pretende-se com este Centro de Formação preservar os valores desta comunidade, oferecer o conhecimento desta história, passando de geração em geração, mantendo o respeito pelos idosos que lutaram e resistiram pela identidade do Quilombo.
 Nesta nova trajetória seguiremos em frente com os saberes da avó Rosa, com as forças iluminadoras de minha Mãe Iansã e de todos os Orixás, mantendo a esperança em meus filhos, e principalmente, na continuidade da força da alma feminina representada pela minha filha Gabriela.
Isabel Cristina Genelício
Janeiro/2013

Este texto concorre ao Prêmio Mulheres Negras Contam Sua História da Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República.

Lei 10639 - 10 anos

- Novembro de 2007 - 
Participação na Capacitação sobre a Cultura Africana

Lei 10.639 de 09/01/2003

De acordo com a lei os estudos de história e cultura afro-brasileira devem ser ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, resgatando e valorizando a contribuição do povo negro na construção da história brasileira nas áreas social, econômica e política brasileira. 


Os costumes africanos que consolidaram a identidade nacional estão presentes em vários setores de nossa vida e não podem ser negados. Conhecendo de forma correta e justa a ancestralidade do povo negro e sua contribuição na  construção da história brasileira, a partir da escola, pode-se realmente reconhecer o valor da diversidade racial e cultural de nossa nação. A lei contribui para o estabelecimento do respeito e fortalecimento dos direitos humanos, como enfrentamento da ignorância dos fatos, da cultura de intolerância e desigualdade nas relações sociais de nosso país.

O rufar dos tambores

Ouvi o rufar dos tambores lá mata na Guiné
era congo saravando, era congo Pai Thomé.
Saravá linha de congo, sarava Pai Thomé,
Saravá linha africana, rainha de nossa fé!

Na ancestralidade africana a comunicação era irradiada pelos Tambores. Até nossos dias eles movimentam o ouvir, o sentir, o ver,  através das energias que emanam num universo simbólico que envolve cultura, religiosidade, musicalidade,...  Os tamboreiros transformam esta energia, através do respeito, em alegria e emoção.


A saudação através do som do tambor afina nossa emoção na homenagem ao guia, caboclo, orixá, despertando uma energia individual, que envolvendo-se coletivamente, transforma-se em curador interno.

O tambor transformou-se, através da história, num patrimônio cultural brasileiro. No ecoar do seu ritmo sentimos força, encontramos a essência da espiritualidade que ele movimenta.

“Ressoou da natureza... primitiva comunicação! 
                Da África... dos nossos ancestrais 
                Dos deuses... nos toques rituais 
                Nas civilizações... cultura 
                Arte, mito, crença e cura...
Tem batuque... tem magia... tem axé! 
 O poder que contagia... quem tem fé!”      Salgueiro/2009

A preocupação com a continuidade desta forma de relação com a espiritualidade tem oportunizado cursos preparatórios para esta prática musical, para além da vivência ritual religiosa, iniciando a capacitação para o toque, no ritmo e timbres dos tambores,  para a execução em conjunto, para a criação e manutenção do instrumento. Exemplo aqui do Curso de Tamboreiros de Umbanda da FAUERS.
A melodia e a harmonia desta forma primitiva de comunicação está vinculada a postura respeitosa com o qual o tamboreiro deve associar o canto, o toque e a manifestação.
O Curso da FAUERS  prepara os alunos aliando conhecimento, habilidade e atitude, partindo da história do instrumento e da Umbanda, do uso simbólico e ritualístico do tambor, preparando para a retirada dos sons através de exercícios com os toques e pontos cantados, passando por debates sobre o valor e o comportamento do tamboreiro junto ao dirigente espiritual e a afinação e o cuidado com seu tambor.
A cada edição a forma como é conduzido o aprendizado se aperfeiçoa, a partir da participação e avaliação dos envolvidos. A metodologia varia conforme a necessidade (auditiva, visual e/ou cinestésica): se dá com a demostração do professor - Baba e Ogã Jorge Grinã, através da interação direta com cada aluno; ex-alunos e os mais experientes auxiliam os demais, aprende-se observando, contando, experimentando, pela imitação... Com o meu  acompanhamento e orientação pedagógica, no final do curso o grupo realiza uma avaliação para a certificação.

O toque e a magia do tambor, socializado pela comunidade religiosa, irradia a fé e a alegria da religião, espalhando muito axé.