Era o final
do século XIX, Maria Luiza Andrade Paim, ex-escrava, e seu esposo Manoel
Barbosa dos Santos, ex-escravo e ex-soldado do exército nacional na Guerra da
Tríplice Aliança contra o Paraguai, regularizam seu terreno na zona rural de
Gravataí e dão ao quilombo o nome do patriarca, pois mulheres não tinham
direitos legais, só lhe restavam passar os seus bens adquiridos para os esposos
e filhos homens. Lá o casal teve 12 filhas, entre elas, Rosalina Correa dos
Santos, nascida em 1908.
Anos mais
tarde Rosalina, mais conhecida como Rosa, casou-se com João Maria Genelício de
Jesus. Por volta da década de 1940 decidem mudar-se para uma terra próxima,
entre arroios e capões, como trabalhadores rurais, onde ela passou a trabalhar
na horta e ele como lenhador. Rosa e
João, meus avós, tiveram 13 filhos. No
lugar escolhido intensificaram pomares e plantações de flores para se
sustentarem. Hoje o espaço se encontra em meio ao centro urbano, cuja paisagem
muito mudou.
E a
liderança feminina se firmou. Tudo começou com a Rosa... Com a Rosalina... Que
plantava Rosas... Que vendia Rosas... Fazendo conhecer a sua Chácara das
Rosas. Sua família se ampliou e a
partir do viver quotidiano com características únicas tornou-se uma
comunidade. Formou sua identidade em
meio aos sentimentos partilhados, valores, influência histórica cultural. Mas,
também com muita luta para garantia do direito territorial e no combate ao
racismo e preconceitos. O local passou a ser conhecido como Chácara das Rosas em
Canoas/RS, que um século após passou a ser reconhecido como um dos primeiros
quilombos urbanos do Brasil.
Importante salientar que avó Rosa, após o
falecimento de seu esposo, com auxílio dos filhos, além da horta e da
floricultura, fazia quitutes caseiros (bolo de milho, bolo de aipim, doces, pão
em forno de barro) bordava colchas de retalho, criava galinhas, porcos e gado
para a sustentação do dia-a-dia da família, mas, também para comercializar nas
feiras e no mercado Café Colonial, um tipo de central de alimentos da época.
Avó Rosa era a parteira e a benzedeira da região, uma referência no território,
uma alternativa de atendimento, quando não havia muitos recursos na época. Desta forma desenvolveu a ancestralidade das
curas, cultura de nosso povo, que se manifestava através do feminino e do uso
dos elementos da natureza. Este fundamento foi resgatado e desenvolvido com a
criação do Terreiro dentro da comunidade pela minha irmã Liege, retomando as
práticas da avó Rosa através da religiosidade afroumbandista. As demais práticas e exemplos da avó Rosa
foram tendo seguimentos pela família. Tia Diolinda, juntamente com Tio Tonho,
mantiveram a cultura das ervas com sua utilização. Seus canteiros são a
farmácia da comunidade até hoje. As primas Beatriz, Rosa, Noemi e Neusa são
destaque no artesanato e culinária colocando o Quilombo dentro da economia
solidária do município. A culinária foi sempre um costume de trabalho coletivo
realizado pelas mulheres, em círculos. A tia Miguelina, apesar de sua limitação
mental, sempre apoiou na preparação dos doces (laranja, abóbora, figo, batata).
A prima Elisabete (Bete) é o exemplo de cuidado com a saúde chamando a todos
para a manutenção da beleza e auto-estima. Outro exemplo seguido foi pela Tia
Tereza Goulart (Tia Nega) na organização e cuidado das crianças, com ajuda da
Tia Miguelina, permitindo o movimento das demais mães para irem trabalhar fora.
Atualmente sua filha Rosângela (Tia Rô) está com esta responsabilidade. Tia
Carminha reside atualmente na casa que era da avó Rosa. Estamos em processo de
estruturação, fomos contemplados no Programa do Governo Federal Minha Casa,
Minha Vida, que ainda tem muito que avançar. As famílias remanescentes de Rosa
e João estão recebendo, cada uma, sua casa e tia Carminha lutou muito pelo
direito de guardar as madeiras da primeira residência do local. Nossa avó, uma
riqueza de saberes, sempre buscou ampliar horizontes e fez acontecer. Como ela,
minha prima Ângela partiu para fora da comunidade, atrás de formação acadêmica,
quando ainda somos vistos como pessoas sem cultura. De todas as formas a
continuidade da liderança da avó Rosa se manifesta. Sua luta por melhorias
ainda hoje está presente em nossa luta. No decorrer da história do Quilombo um
dos acontecimentos que mais nos marcou foi a iluminação da comunidade em 2009.
Lembro quando minha tia Abrilina, filha mais velha da avó Rosa, de 82 anos,
olhou pela janela a noite e disse: - Isabel parece dia!
Minha liderança também se espelhou no seu grande
exemplo, e na forma como meu pai João dos Santos Genelício conduzia o diálogo
para resolução de problemas internos da comunidade. Após o falecimento de meu
pai decidi participar ativamente e, a partir daí, se iniciou o processo de
criação de uma associação, pois me recordo que durante uma reunião os membros
da minha família estavam muito desmotivados e compreendi que neste momento era
a hora de entrar na luta por nossos direitos.
Também, com minha mãe Glaci Goulart Genelício aprendi muito, pois ela
agrega as mulheres do entorno chamando para chás e feijoadas, e estes momentos
sempre foram de grande debate e reflexão.
Com o passar do tempo os problemas da comunidade
foram se avolumando. No entorno éramos reconhecidos como os pretos, cujo espaço
era chamado de planeta dos macacos; sem acesso a qualquer política pública não
tínhamos saneamento básico em pleno centro da cidade, em meio a valorização
territorial. Através do movimento quilombola junto a outras parcerias foi
criado em 2007 o grupo de apoio à Chácara das Rosas. Foi um momento de despertar,
de muita afirmação, onde parecia tudo tão perfeito com minha irmã Liege na
liderança religiosa e eu a frente da Associação criada no Quilombo. Fortaleceu-se a partir daí a participação
das mulheres, cujas ações a favor de sua comunidade movimentou conhecimentos
que se traduziu em poder pessoal e influência social. Firmou-se todo o tipo de
liderança, independente da idade e da forma de decisão: apaziguadora,
cuidadora, multiplicadora, criadora, relatora, divulgadora, artista, produtora,
articuladora... As protagonistas são as filhas, noras e netas da Rosa: mães,
irmãs, tias, sobrinhas, primas, juntas, combatendo, a seu modo, o preconceito,
o racismo e demais conflitos dentro e fora do Quilombo.
Uma grande contribuição no processo foi a do
Terreiro do Quilombo Reino do Pai Ogum. Destaco a coragem e a força do
Babalorixá Liege – na pessoa de meu irmão Edson Genelício - que garantiu o
direito de exercer o culto de matriz africana, reconhecendo e resgatando a
identidade de nossos ancestrais. A liderança religiosa de minha irmã Liege
impulsionou as demais lideranças femininas. Sua resistência de forma
organizada, a preocupação com o fortalecimento do sentimento de comunidade, de
pertencimento, traz alternativas de sustentabilidade através de chás beneficentes,
galetos e festas com o objetivo de arrecadação de fundos e doações para o
auxílio aqueles que mais necessitavam. O Terreiro passou a ser uma referência,
onde nós, mulheres do Quilombo, passamos a nos reunir mais, nos empoderando e
desenvolvendo novas redes de apoio e parceria, com o objetivo de auxiliar na
resolução de problemas identificados junto a nossa comunidade tradicional.
Intensificamos a confecção de artesanatos diversos, envolvendo a todos, e
passamos a comercializar em diferentes eventos. Passamos, também a realizar reuniões e oficinas de capacitação de
acordo com as necessidades. Este Terreiro foi um centro especial, como o braço
de uma mãe que acolhe seus filhos, uma vez que, com o tempo, as moradias
precárias e a extrema falta de estrutura, significavam problemas e conflitos,
requerendo diálogo constante, união e o entendimento na comunidade. Neste
sentido as mulheres não ficaram somente confinadas ao seu espaço doméstico, mas
colaborando e liderando na busca de soluções.
Em 2009 a Associação Remanescente Chácara das
Rosas foi, finalmente, registrada com seu estatuto. Neste mesmo ano a
comunidade recebeu a sua titulação como Quilombo Urbano. Em março de 2011, por
ocasião do dia da mulher, a associação, apoiada pelos parceiros, organizou o I
Encontro Regional das Mulheres Quilombolas com o tema Inspirando Esperança, Invocando Mudança. Reunimos familiares e
amigos de outros quilombos do Estado, além de representantes do poder público e
de Ongs. O objetivo era discutir a
força da mulher quilombola como protagonista de ações locais para que as demais
políticas avancem, cujas articulações integradas ajudam a estender sua força e
reconhecer seu poder de realização. Foi um encontro onde foram debatidas as
políticas públicas, cultura e direito para atender os anseios e preocupações
com a construção de uma vida saudável, com a família, com as crianças e jovens,
dentro e fora da comunidade. Pude perceber os avanços na nossa e nas demais
comunidades em participação, iniciativas e conquistas que fortaleceu o
sentimento de pertencimento à cidade, à região e a sua história. Este encontro alavancou nosso processo de
desenvolvimento para a formação de uma rede de mulheres quilombolas parceiras
com o objetivo de se auxiliarem na resolução de problemas específicos,
identificados junto as comunidades tradicionais. Queremos honrar a nossa
herança, cuidar dos nossos membros, apostar no futuro.
Esperamos criar um Centro de Formação e
Capacitação para que, a partir de nossas demandas junto às políticas públicas,
possamos abrir as portas da nossa história, cultura, costumes e valores
aproximando assim a Comunidade Quilombola da nossa sociedade. Para isso, minha
irmã Neusinha assumiu um papel importante de registro de nosso movimento
auxiliando na tradução de nossas demandas. Como neta de Rosa e João,
busco articular a continuidade dessa luta de quatro gerações, na manutenção de
nossos direitos e da identidade negra, passada para nossas crianças cujo
aprendizado pretendemos firmar na crença do poder de realização. Pretende-se
com este Centro de Formação preservar os valores desta comunidade, oferecer o
conhecimento desta história, passando de geração em geração, mantendo o
respeito pelos idosos que lutaram e resistiram pela identidade do Quilombo.
Nesta
nova trajetória seguiremos em frente com os saberes da avó Rosa, com as forças
iluminadoras de minha Mãe Iansã e de todos os Orixás, mantendo a esperança em
meus filhos, e principalmente, na continuidade da força da alma feminina
representada pela minha filha Gabriela.
Isabel
Cristina Genelício
Janeiro/2013
Este texto concorre ao Prêmio Mulheres Negras Contam Sua História da Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República.